sábado, 27 de dezembro de 2008

Alquimia Taoísta


Alquimia Taoísta
Por: Anderson Rosa


A alquimia taoísta é conhecida por muitos pela expressão "o amarelo e o branco". Longe de ser apenas uma expressão simbólica, ela significa tanto a transmutação dos metais em ouro, quanto o processo da alquimia interna. No entanto, devemos aqui fazer uma ressalva de que esta alquimia interna não tem nada em comum com os pseudo-processos de alquimia mental ou alquimia espiritual tão em moda nos dias de hoje, que só servem para cegar ainda mais o buscador. Lembramos pois, que só existe uma alquimia capaz de conduzir à verdadeira transmutação, e esta não é a alquimia de livros ou de embusteiros, mas sim a alquimia prática. Por prática definimos aqui o tipo de alquimia que se serve da experimentação, seja com um laboratório equipado para tal, com retortas, fornos, alambiques, seja do tipo que se utiliza do corpo como laboratório. E é justamente deste segundo tipo de alquimia que falaremos aqui.

Esse tipo de alquimia, também é chamado de Yoga Taoísta (Qigong). Nos livros atribuídos à alquimia taoísta, é comum o uso das expressões como fornos e caldeirões. Muitos desconsideram essas alusões, por acreditarem tratarem-se apenas de analogia, descartando o resto como irrelevante. Mas é importante salientar que muitos textos usam tais expressões representando os caminhos dos Meridianos da Acupuntura ou ainda pontos específicos dentro do sistema de meridianos e da teoria dos 5 elementos. Um exemplo claro disso, pode ser visto num trecho de obra antiga: "Seja o Tai Hsu [O Grande Vazio] teu caldeirão; seja o Tai Ji [Princípio Dinâmico da Harmonia da própria Natureza] tua fornalha. Para ingrediente básico, toma a serenidade. Para reagente, toma o wu wei, a não-atividade. Para mercúrio, toma teus dons naturais [de Jing, Qi e Shen], para chumbo, toma tua força vital. Para água, toma contenção. Para fogo, toma meditação. Está escrito que o verdadeiro elixir assim composto, se de qualidade inferior, assegurará longevidade e manutenção do vigor juvenil; se de qualidade superior, habilitará o adepto a 'transcender o mundo dos mortais e atingir a santidade'".

Existem 3 tipos de energia poderosas permeando o universo: Jing, Qi e Shen. Tais energias representam o surgimento do ser no pleno vazio, a ascensão e o desvanecimento das dez mil coisas, como define o Tao Te King. Na sua forma original, tais energias são extremamente poderosas e puras, capazes de provocar transmutações profundas. No homem, no entanto, somente pessoas realmente iluminadas conseguem usar tais energias adequadamente.

O homem, assim como todas as coisas existentes, possui certa parcela de cada um desses 3 tesouros. No entanto, devido ao ritmo de sua existência e seu inerente desequilíbrio, essas energias tornaram-se grosseiras, e precisam antes de serem trabalhadas com propósitos de iluminação espiritual, serem novamente purificadas ou filtradas, de forma a retirar delas toda a ganga existente.

Abaixo, reproduzo uma tabela de John Blofeld, do seu livro: "Taoísmo, A Busca da Imortalidade", que permite uma ligeira compreensão dos 3 tesouros a serem recuperados:

Os Três Tesouros :

Jing (Essência)

Forma RudimentarNão exatamente idêntica, mas intimamente associada aos fluidos sexuais masculino e feminino, que o veiculam.
Forma SutilInterior, dá a matéria sua forma tangível e sua substância.
Forma Cósmica (Yang)Pertinente ao cosmos, dá forma tangível ao que originalmente que era vácuo indiferente.

Qi (Vitalidade)

Forma RudimentarNão exatamente idêntica, mas intimamente associada ao ar que flui pelos pulmões, rins e poros, que o veiculam.

Forma SutilVitalidade indistinta (exceto devido à localização temporária) de sua contrapartida cósmica.

Forma Cósmica (Yang)Vitalidade cósmica vista como tê, virtude do Tao de que todas as coisas estão imbuídas.

Shen (Espírito)

Forma Rudimentar /Espírito ainda não depurado das impurezas dos sentidos e dos pensamentos errôneos.

Forma Sutil / Espírito impoluto, livre da contaminação das paixões e do desejo sensual.

Forma Cósmica (Yang) / Espírito cósmico, vazio puro, indiferente.

Nos textos taoístas, tais termos podem aparecer com um significado devidamente explícito, ou em outras vezes com significados mais nebulosos, sendo que nem sempre se consegue distinguir com clareza qual o sentido mais objetivo a que o texto se refere. Por isso no caminho da Alquimia Taoísta, assim como em outros caminhos da espiritualidade, surge a necessidade de um mestre, sem o qual, todos os textos tornam-se incompletos. As lacunas existentes são passadas oralmente de mestre a discípulo. Existem formas também para cobrir essas lacunas que dispensam um mestre em determinado ponto, porém, não trataremos dessas vias e de sua explicação neste breve ensaio.



A Teoria da Alquimia

Existem inúmeros textos que versam sobre a alquimia taoísta, mas semelhantes aos textos da alquimia ocidental, são textos cujo significado na maioria das vezes não é claro e compreende uma profunda compreensão cultivada anteriormente na longa jornada que conduzirá até a imortalidade. Como já dissemos noutro lugar, o conceito de imortalidade taoísta é um tanto diferente do ocidental, cuja definição de imortalidade é 'viver para sempre'. No taoísmo, define-se a imortalidade como viver plenamente, sem desejo, com qualidade, até o momento da partida. E nesse caso, os textos taoístas defendem que um ser humano consegue atingir a idade de 600 anos através dessas práticas. Logo, a imortalidade taoísta não é um 'viver eternamente', mas sim poder optar pelo momento de morrer. Ou seja, a morte é uma opção e não uma obrigação.
Ainda sobre a imortalidade, creio ser uma citação importante, uma conversa entre Blofeld e um eremita no inverno de 1935:

"Tudo o que fazemos é cultivo. Quanto ao Yoga (Yoga Taoísta) e à meditação formais, praticamo-los nas primeiras horas do dia e à noitinha. Não há regras, portanto nada que bloqueie ou prejudique a auto-satisfação. O segredo consiste em sentir quando determinada ação é oportuna e concorde com o Caminho. É uma questão de... como direi?... Ah, sim, de aprender a ser!" - "Não têm aborrecimentos, angústias?" - "Senhor, deve estar brincando! Somos apenas humanos. Os males acontecem. Mas aprendemos que eles passam, como tudo passa. Quando estamos doentes ou sem dinheiro para as necessidades mínimas, sentimo-nos ansiosos; entretanto, com a repetição desses incidentes, aprendemos a aceitar o mal e o bem, a vê-los como são: partes do ser, que não se podem dispensar sem prejuízo para o todo".- "E quando fica doente, imortalidade? É difícil imaginar um imortal tossindo! A meu ver..."- Ele riu: "Pior que isso, jovem. Os imortais não só adoecem, como morrem! Poderia ser diferente? Tornar-se imortal tem pouco a ver com as mudanças físicas, como o embranquecimento de um urso outrora negro; quer dizer, conhecer algo, perceber algo... uma experiência que pode sobrevir num átimo! Ah, quão precioso é esse conhecimento! Quando pela primeira vez o atinge, você sente vontade de cantar e dançar, sente-se à beira da morte, ou de uma grande explosão de riso! Porque, de repente, percebe que nada no mundo pode feri-lo. Rujam os trovões, fluam as torrentes, dêem o bote as víboras, chovam as flechas - você os espera sorrindo! Passa a ver o corpo como uma flor nascida para desabrochar, para dar perfume, para viver e morrer. Quem se importa com a peônia, que parece estar ali para sempre, para milhares de anos? Uma abóbora merece mais atenção. É bom que as coisas terminem por morrer, e não há nenhuma perda nisso, pois a vida é imortal e jamais cresce com os nascimentos nem definha com as mortes. Um objeto gasto é descartado, e a natureza o substitui facilmente. Percebe agora? Você não pode morrer, pois nunca viveu. A vida não morre, pois não tem começo nem fim. Tornar-se imortal significa apenas deixar de se identificar com sombras e reconhecer que o verdadeiro eu é a vida sem termo. Mas que tolice estou dizendo? Esperam-nos para a refeição, venha!" - Blofeld ainda completa: "Pela primeira vez na vida, percebi que um homem pode não ter fé na sobrevivência pessoal e, entretanto, reconhecer que, ao perder-se, nada se perde".


Devemos compreender que nos tornarmos imortais não por nossos esforços, ou como um prêmio, um êxito. Mas tornamo-nos imortais ao alcançar a harmonia - quiçá unidade - com o Tao eterno.

No Livro do Elixir Áureo, temos: "Com a transmutação do Jing (essência) em Qi (vitalidade), a primeira barreira é rompida, sobrevindo a perfeita serenidade do corpo. Com a transmutação do Qi em Shen (espírito), a barreira intermediária cai, sobrevindo a completa serenidade do coração. Com a transmutação de Shen em vazio, a barreira final desmorona, e a mente se une à Mente. Assim se compõe o elixir e se obtém a imortalidade. Tal a verdadeira significação [de tudo quanto foi dito e escrito a esse respeito] da sagrada prática de cultivar e nutrir [jing, qi e shen]; ela não diz respeito de forma alguma à composição de uma pílula concreta".

Um ponto a se considerar no quesito da produção da pedra, é que não há um consenso geral sobre a sua obtenção: se é material, espiritual, ou uma junção de ambos os casos. Existem inúmeros relatos de mortes causadas por intoxicação com metais pesados, pela ingestão de substâncias produzidas erroneamente. Mas ainda assim, existem taoístas letrados, que consideram importante a conciliação dos medicamentos com a prática yóguica. Tais medicamentos tinham como objetivo a obtenção de 2 subprodutos: longevidade e conservação do vigor. Essa idéia encontra paralelo nas leis naturais taoístas, onde todos os princípios operam em todos os níveis de existência.

Num antigo texto esotérico, o autor busca explicar o real sentido de "misturar ingredientes para o elixir", dando outros sentidos para os termos alquímicos: "A serenidade é o principal ingrediente da alquimia, e não deve ser tomada na acepção de suprimir os sentimentos de sorte a tornar o indivíduo semelhante às pedras, às árvores ou à relva; que wu nien (literalmente, "não-pensamento") significa "pensamento real" ou pensamento igual à luz voltada para si mesma, fazendo com que o shen desperte o qi e o transforme em espírito-substância solidificado; que "chumbo" e "mercúrio" na verdade se referem a shen e qi, e que apenas nas formas inferiores do Yoga utilizam ingredientes. Prossegue ainda dizendo que, onde os textos falam em "macerar ervas para o elixir", o significado real é "controlar o corpo e a mente"; pois só quando a mente está calma ficarão completos Shen e Qi, prontos para a composição do elixir no cadinho do corpo".

O Regime: Preliminares para os 8 estágios

Nutrição do Corpo: "O fundamental é moderação em tudo. O alimento deve ser suficiente para aplacar a fome, mas não abundante nem por demais saboroso. Beba-se vinho, mas beba-se numa quantidade que não leve à excitação nem à vontade de cantar! A roupa deve ser adequada para a estação, nem muito leve no verão nem muito pesada no inverno. Quanto ao sono, a falta é tão danosa ao progresso quanto o excesso. Não se deve deitar-se nem levantar-se em horas irregulares, nem adormecer ao relento quando o sereno for forte. Relativamente aos banhos, diferentes escolas tem diferentes regras, mas deve manter-se um equilíbrio entre a higiene descuidada e o excessivo prazer de entrar na água. O exercício, embora bom, não deve ser violento nem conduzir à fadiga". - Ko Hung.

Um outro texto diz: "Os legumes, embora saudáveis, provocam estupidez; a carne, embora fortalecedora, faz engordar; os cereais, embora motivadores de sabedoria [alimento para o cérebro?], bloqueiam a longevidade; mas quem se nutre de Qi irradia luz pelo corpo e não morre nunca".

Existem 5 sacrifícios a fazer: "Apego à saúde e à fama faz mal - dispensa-o! Excessos de alegria ou de cólera perturbam a serenidade - dispensa-os! Forte apego aos prazeres dos sentidos produz desequilíbrio - dispensa-o! Preocupação com o êxito no cultivo do Caminho provoca o fracasso - dispensa-a! O desperdício do precioso estoque pessoal de Jing (sêmen) debilita a mente e o corpo - dispensa-o! Essas 5 formas de abstinência auxiliar-te-ão a viver mais - fica certo disso, mas não sejas tolo a ponto de julgar que te garantirão longevidade".

Respiração: O controle da respiração é fundamental em quase todos os tipos de Yoga: chinesa, indiana, tibetana. Existem muitas teorias de como as doenças se instalam no corpo devido à respiração errada. Por exemplo, a respiração torácica leva à ansiedade e ao sentimento de aperto no peito. Deve-se respirar não apenas pelos pulmões, mas pelos poros e pelos rins. Segundo a Medicina Tradicional Chinesa, os rins são o primeiro órgão a se formar durante a gestação e a respiração do bebê no ventre materno se realiza pelos rins, não pelo pulmão, que só começa a funcionar após o nascimento. Para uma prática regular de respiração deve-se manter uma dieta leve, com legumes frescos.

Para os horários das práticas, as horas que medeiam da meia-noite ao meio-dia são favoráveis à prática da respiração; as horas entre o meio-dia e a meia-noite não o são, pois é quando "o qi expira".

Exercícios: Existem muitos exercícios que poderiam entrar nessa classe. Talvez o mais comum seja o Tai Ji Chuan. Mas o Tai Ji seria muito mais aplicado à arte marcial propriamente dita do que especificamente à alquimia taoísta, embora seja também uma técnica de longevidade. E é claro, existe o Qigong, que é a Yoga Taoísta em si. Os exercícios podem ser divididos basicamente de dois tipos: Daoyin - exercícios de alongamento dos meridianos, e Neiqi, ou trabalho interno. O segundo, Neiqi, normalmente se caracteriza pela quase ausência de movimentos externos, e representa um tipo poderoso de Qigong, cujo objetivo é o desenvolvimento espiritual, em seu último estágio. Para maiores detalhes das práticas de Qigong e Tai Ji e seus diversos estilos, verifique http://oraculo.cih.org.br.
Ingestão: Embora seja uma prática que foi quase totalmente abandonada do regime yóguico por não ser um reflexo do verdadeiro caminho, teve por longos séculos um papel importante na busca da juventude e da longevidade. Os ingredientes mais usados eram: os cogumelos da família kih, que podem ou não estar relacionados com a planta atual kih, da família do sésamo, o podophylum, sementes de pinho, cálamo, fu-ling (raiz da china), cogumelos encontrados na base dos abetos, jade, mercúrio, cinábrio, enxofre amarelo, mica, etc. Segundo a lenda, essas drogas faziam o corpo irradiar uma luz sagrada e aligeiravam os membros.
Dessa ingestão voluntária de drogas e beberagens, pode ter surgido algo semelhante à homeopatia, onde pequenas porções de veneno tornam-se remédios. num processo de magia simpática. No entanto, é sabido também que muitos reis e muitos curiosos que beberam desses estranhos remédios encontraram a morte rapidamente, ou no máximo em alguns meses. Mas isso levantaria ainda uma outra questão: será que tais monges não mudaram a própria estrutura do seu ser para suportar tais remédios e elixires, enquanto as pessoas que não foram devidamente preparadas pelo longo caminho morreram daquilo que deveria salvá-las?


Os 8 Estágios da Alquimia Taoísta

A verdadeira imortalidade: O Qi amplia-se pela interação de Jing, Qi e Shen. No entanto, cabe comentar que essa ampliação implica um processo demorado e grande dedicação por parte do adepto. Mesmo a prática diária dos exercícios (Qigong), não são suficientes para fazer toda essa ampliação. Logo, ter sempre em mente as preliminares descritas acima como parte desse processo. A partir dessa interação e da ampliação do Qi, torna-se em espírito-Yang (Shen cósmico puro), transcendem-se as limitações físicas, e ocorre o mergulho na ilimitada fonte do ser.

"Enquanto a vida permanece, o espírito pode abandonar a carne a seu talente. Após a morte, regressará à fonte, misturar-se-á a ela e viverá para sempre. Se esse estado não for obtido em vida, as almas gêmeas acabarão por se extinguir, embora possam sobreviver em espírito por algum tempo. As folhas amareladas do outono não vivem muito depois de separadas do tronco nutriz, nem pode a árvore durar mais que alguns séculos".

A base: Existem naturalmente 2 seqüências. Conforme o Tao Te King: "O Um [Tao], dá nascimento ao dois [yin e yang], o dois, ao três [shen, qi, jing], o três, às miríades de objetos". Nesse processo, o vazio torna-se espírito. O Espírito torna-se vitalidade e vitalidade torna-se essência. E finalmente, a essência em forma. Ou seja:

VAZIO -> ESPÍRITO -> VITALIDADE -> ESSÊNCIA -> FORMA ou aindaTAO -> SHEN -> QI -> JING -> MIRÍADES DE COISAS (OU 10 MIL COISAS)

Quando o Shen é controlado, preserva-se o corpo físico, nutre-se o corpo para transmutá-lo em Jing, acumula-se Jing para transmutá-lo em Qi, e transmutam Qi para gerar o Shen, e transmuta-se o Shen para voltar ao Vazio (Tao), e é quando o elixir está destilado. Logo, é preciso ter essas 3 energias em abundância.

Desde o início o macho e a fêmea devem preservar a vitalidade sexual pela contenção das emissões, de modo que o Jing, tanto grosseiro quanto o sutil, sejam preservados. Dessa forma, o Qi aumentará, e o Shen florescerá.

No processo da alquimia taoísta, podemos dizer que os passos se encaminharão mais ou menos na seguinte seqüência: à medida em que as energias forem preservadas e cultivadas, o corpo se fortalecerá, desaparecem as doenças, a mente se torna mais clara e atenta, a pele rejuvenescerá e retorna também o vigor para o corpo. Logo, o processo se conduz pela observação dos seguintes pontos: A Conservação assegura a abundância do Jing, Qi e Shen. A Restauração recupera as deficiências e a Transmutação leva ao Vazio. Esta ocorre em 3 estágios -> O Jing, Qi e Shen à contrapartida sutil; do sutil para o puro Yang-Shen; e daí para o Vazio (Tao).

Nos casos em que o processo é iniciado tardiamente, a energia desperdiçada anteriormente pode ser restaurada pelos métodos apropriados.

Vamos agora à descrição detalhada de cada um dos 8 estágios:

1. Conservação do Jing: Torna-se necessário evitar o desperdício do sêmem. Muitos autores ocidentais postulam a necessidade de erradicar o prazer e o desejo, no entanto, depois de muita prática, percebemos que o objetivo na verdade, não é erradicar ou banir o desejo e o prazer, mas evitar o excesso de ambos. Apesar de ser outra corrente filosófica, esse pensamento assemelha-se ao Caminho do Meio do Budismo. A melhor definição que talvez possa descrever isso é: desejar, mas não demais. Ter prazer, mas não demais. Pois o segredo é o equilíbrio e a harmonia, não a ausência, pois seguindo o princípio do Tai Ji (o famoso símbolo do Yin/Yang que mostra a concorrência das energias), tudo busca um equilíbrio. Assim a ausência absoluta do desejo e do prazer, só podem conduzir à busca desenfreada dos mesmos. O intercurso (relação sexual) não é mal ou ruim, mas pode levar ao desequilíbrio se for descontrolado. No texto Instruções Secretas para a Composição do Elixir Áureo é dito que:

"Quando a pessoa está tranqüila e contém seus desejos, Jing e Qi sobem dos três receptáculos [Dan Tien Inferior, Médio e Superior] e correm através de canais psíquicos; o ato sexual, entretanto, suga-os para as 'portas da vida' (entre os rins), de onde são ejaculados. Mesmo na excitação involuntária agita-se o fogo nas 'portas da vida' e o Jing e o Qi transbordam; a menos que sejam forçados a voltar, haverá perda como se a ejaculação realmente acontecesse".

"Só homens de raro talento podem entregar-se ao perigoso ioga do cultivo dual (com parceiro sexual). Pessoas menos bem-aquinhoadas acabam por exaurir sua cota de Jing e Qi, comprometendo a saúde e vendo-se forçadas a abandonar para sempre a tarefa sagrada de criar um corpo imortal. Ao fim, tornam-se meros libertinos, votados à extinção - e a isso chamam cultivo do Caminho! Seria risível, se não fosse lamentável".

Evitando qualquer excesso tanto de um lado como de outro, Sun Szu-Mo aconselha: "Para jovens de vinte anos, uma emissão a cada quatro dias; para homens de trinta, uma a cada oito dias; para homens de quarenta, uma a cada dezesseis dias; aos cinqüenta anos, basta uma emissão a cada vinte e um dias. Evite-se toda emissão após os sessenta anos; não obstante, um homem ainda robusto depois dessa idade pode-se permitir uma mensalmente, apesar de se esperar dele, a essa altura, pensamentos mais tranqüilos e total abstinência".

Aqui devemos fazer uma advertência no entanto, em relação oriente/ocidente e passado/atualidade. Devido à escassez de comida em tempos longínquos, higiene adequada, falta de serviços de saúde pública e água tratada, embora alguns possam defender que a vida era mais 'natural', viver também era mais arriscado, pois muitas enfermidades vinham da péssima condição de vida em geral. E foi justamente isso que levou os chineses a criarem a acupuntura e demais técnicas da Medicina Tradicional Chinesa, para preservação da saúde. E atualmente, apesar de dizermos que a comida moderna é pior para a saúde, existem muito mais opções saudáveis do que jamais houve sobre a terra em qualquer tempo sob qualquer condição.

Portanto, algumas das observações sobre evitar emissões, se referem a pessoas que naquele período chegavam raramente aos 60 anos e quase nenhum aos 60 anos com saúde. Portanto, nesses casos, uma emissão associada a uma condição geral de vida ruim, certamente iria debilitar ainda mais o organismo. No entanto, na atualidade, as regras podem ser re-trabalhadas, de forma a se tornarem coerentes com a vida atual. Mas ainda assim convém observar uma coisa.
Nem todas as pessoas levam sua própria saúde a sério. Assim, aqueles que desejam dedicar-se a esta via sagrada, devem observar essas regras com cuidado. Pois se alguém trata seu corpo como um Aterro Sanitário, jogando ali dentro todo lixo que encontra no caminho, é claro que para esta pessoa, o processo de Restauração em si já é quase tão impossível de atingir como a própria imortalidade.


2. Restauração ou Reparação do Jing: Esse processo é necessário caso o praticante tenha tido perdas danosas antes da adesão ao processo alquímico. Logo, a observação contra os excessos de qualquer natureza aqui é de suma importância. Além disso, torna-se necessário 'Colher o Jing' (não confundir com 'Reunir o Jing' que é a mistura das essências do cultivo dual, entre parceiros). Para colher, é necessário evitar o intercurso sexual e bloquear o desejo, assegurando a tranqüilidade. Álcool e alimentos picantes devem ser evitados, porque o Jing (aqui significando sêmen), sendo secretado pelo sangue, deve ser nutrido, evitando-se a super-excitação. A cólera e outras paixões excessivas fazem o fogo Hsing predominar no fígado, afetando também outros órgãos como o coração; o álcool esquenta o sangue. Isso tudo é perigoso, devendo-se evitá-los. Temperos fortes como cebola e alho, devem ser evitados ou usados com parcimônia. Os exercícios adequados devem ser realizados juntos com a respiração, mas deve-se evitar chegar à estafa. Deve ser vigoroso, mas não extenuante.

3. Transmutação do Jing: Mais importante que a conservação e a reparação, a transmutação do Jing em Qi, é essencial para o processo alquímico. Ele torna-se a principal fonte de Qi. Sugerimos aqui a leitura do texto 'O que é Jing?' para uma compreensão dos diversos tipos de Jing. Deve-se evitar desperdiçar o Jing existente, equilibrar o Qi e estimular o Shen para que se torne cada vez mais límpido. Esvaziar a mente de pensamentos provoca o acúmulo de Qi e a produção de Jing. Havendo o suficiente, sua transmutação é fácil.

Quando desejos e sensações são dominados de modo que a mente, livre de pensamento discursivo, se torne semelhante a um lago sereno, então o Yang-Qi se consolida e nutre o Jing sutil, produto da transmutação trazida pela perfeita serenidade, pelo vazio perfeito; simultaneamente, a consolidação do Shen deve ocorrer pela contemplação da luz que emana da área conhecida como "preciosa polegada quadrada". Nada de conceitos! Nada de pensamentos! Quando a mente está vazia, o Shen se consolida e a energia Yang do Céu penetra. Eis a base do Qigong. Na ausência da serenidade, todo o resto é inútil!

"Meu pensamento não se volta para fora,Nem há, por dentro, guarida para ele;As miríades de coisas se aquietam em repousoE meu ser inteiro no nada se dissolve!"

Yuan Liao-Fan sugere uma prática que auxilia na transmutação que consiste em levantar-se à meia-noite, sentar-se na cama, segurar o escroto com uma das mãos e espalmar a outra mão sobre o umbigo. Não tendo havido ejaculação recente, o Yang-Qi na parte exterior chega ao ponto máximo entre vinte e três horas e uma hora da madrugada, quando o Qi do corpo e do Céu estão de acordo. Tendo havido emissão recente, esse período é retardado e flutua entre uma e cinco horas da manhã. Mas há casos em que nada ocorre, quando o céu e a terra não estão de acordo.

Em suma: aquiete-se o Qi para que o Shen se torne límpido; apanhe-se o yang-shen externo no momento em que seu fluxo chegou ao ápice; mentalmente, elimine-se o dualismo "eu/outros"; suste-se o fluxo de Jing rudimentar a fim de que o Jing sutil não diminua; obtenha-se a calma mental e contemple-se a radiância interior; então, o Jing rudimentar se transformará em Jing sutil no corpo do praticante, identificando-se com o Jing cósmico exterior. Há outros passos além desses, mas devem ser transmitidos apenas a iniciados.

4. Alimentar o Qi: É o vento que se agita dentro do caos anterior ao nascimento do universo (ver diagrama do Céu Anterior). Alimentar o Qi significa acumular um estoque do Qi sutil. A serenidade é a base de tudo. Além de acalmar a mente, deve-se manter a prática da respiração correta. A agitação da mente prejudica o acúmulo de Qi. A mente deve ser tranqüila e a respiração uniforme.
Existem 4 tipos principais de respiração: a leve, que é tão suave a ponto de tornar-se inaudível para o praticante; a longa, que são séries de respirações lentas, plácidas e contínuas; a profunda, que é orientada ao umbigo, com o ventre contraído e a uniforme, onde inspiração e expiração tem a mesma duração. O Clássico da Longevidade, recomenda:
"Sente-se calmamente durante algum tempo. Deixe a mente tornar-se límpida, como na preparação para a meditação Chan (Zen), com os olhos fixos na ponta do nariz, e este alinhado com o umbigo. As expirações e inspirações devem ser tranqüilas, lentas, de duração uniforme, jamais ofegantes. Enquanto se expira, o Qi se eleva; enquanto se inspira, ele baixa. Não deve haver intervalos nem se deve prender a respiração. O ato de respirar deve receber apenas uma ligeira atenção, limitada a uma calma consciência da passagem do ar pelas narinas. Ainda assim, não se deve permitir que o sentido da audição se detenha em nenhum objeto".

Respirar como um bebê no útero significa que o Qi foi devidamente alimentado e transmutado, e que a respiração é tão suave e regular que dá a impressão de haver cessado. Ainda assim, com o tempo, a respiração normal às vezes cessa, sem causar morte ou mesmo desconforto, sendo o ar absorvido um pouco através dos rins e um pouco dos poros.
O Shen é a nossa natureza, o Qi, nossa vida.

5. Transmutar o Qi: Os iniciados aprendem a aumentar o calor interno com o qual se promove a transmutação do Jing, Qi e do Shen. Esse processo deve ser tentado apenas sob orientação de um mestre, dada sua dificuldade. Este estágio só pode ser ultrapassado ou sequer tentado após o acúmulo necessário de Qi exigido no estágio anterior.
"A lua cheia brilhaNa calma do vazio.Quando o vento agitarA superfície do lago,Guarde uma gota no peito.O parente do rubro sol saberá".

6. Alimentar o Shen: Por ser espírito, o Shen é o 'senhor do corpo', 'a mãe do elixir dourado' e outras denominações exaltadas. Segundo um dos clássicos do Imperador Amarelo, "alimentar o Shen constitui a mais alta tarefa; alimentar o corpo - apesar de importante - é secundário".

Num tratado antigo, atribuído a Hsi Wang Mu, é dito: "O modo de fixar [o shen] e [o] conservar consiste em saber o que é a felicidade [isto é], estar satisfeito com o suficiente, estar além da aflição causada pelo frio e pela fome, estar livre da servidão dos pensamentos ociosos - pois então surge o Qi com o qual a mente é alimentada. Pratique durante a vigília noturna, sem preocupar-se com posturas especiais. Cruze os braços, relaxe os membros, expulse os pensamentos ociosos, deixe que o corpo seja o único objeto da consciência. Então o shen será fixado, o qi corrigido e seu espírito se tornará imune ao envelhecimento e à morte".


7. Transmutar o Shen: O Shen grosseiro transmuta-se em espírito puro (Shen Cósmico). Os cuidados foram banidos, as preocupações, afastadas; não há um só pensamento a agitar a tranqüilidade da mente - em tudo, apenas a sagrada radiação"!

"O Yang-Shen transcende o mundo tríplice. [Com ele] vossa tarefa estará completa, vossa prática, realizada; e então ascendereis ao rutilante pálio do céu". - Livro do Elixir.




8. Transmutar o Shen esvaziado para torna-lo um com o Vazio (Tao): Tendo purificado e transmutado nosso estoque de Shen de modo a torná-lo idêntico ao vazio em sua natureza, o estágio final consiste em transcender a existência individual, em "voltar à fonte".

Shen esvaziado quer dizer mente ou espírito tão livre da servidão dos sentidos e dos dualismos como 'eu' e 'o outro' que a existência individual foi transcendida, salvo na medida em que o praticante ainda possui uma forma corporal individual (que só será descartada na morte). Por vazio entende-se 'o puro Yang', não o mero vácuo, mas uma plenitude indiferenciada, totalmente intangível, ou yang-shen sem forma. Quando alguns praticantes dizem "dar a luz à uma criança imortal", quer dizer: resumir ou voltar à natureza real e sagrada do ser original; o útero em que essa criança se forma nada mais é que o yang-shen original. Tendo atingido a perfeita serenidade, a mente mergulha no lago, isto é, no esplendor do shen concentrado. Agora de plena posse da natureza pura e sagrada do ser original, tranqüilo e auto-existente, o praticante não vê barreira entre ele e sua gloriosa meta final.

É porque as pessoas comuns não sabem transmutar seu shen que o shen não se congela num espírito-corpo, capaz de retirar-se do corpo carnal durante algum tempo e encontrar glorioso relaxamento na totalidade do ser. Os que disso são capazes constituem os verdadeiros imortais; seu "vôo" significa flutuar de vez em quando para diluir-se na condição primordial que se encontra para lá do universo da forma. Esse "vôo" constitui um estado de consciência no qual o sentimento do "eu" e do "outro", do céu e da terra desapareceu; nada existe senão o puro vazio, um oceano ilimitado de Qi, semelhante a um panorama de nuvens-formas em constante mutação. Tchuang-Tsé descreve esse estado como "diluição do vazio do yang-shen de alguém no vazio do Vazio original".

"Quanto ao estágio final, o objetivo é retornar à fonte através de uma apoteose, que pode apenas ser sugerida por palavras. O ego ilusório desaparece, e não obstante, nada de real é perdido. O espírito, liberto de suas peias, regressa ao Espírito, não como a gota destinada a formar uma insignificante partícula do vasto oceano, mas como o ilimitado retornando ao ilimitado. A consciência, agora livre, expande-se para abarcar - para ser - o universo inteiro! Pode por acaso, haver empresa mais gloriosa?

"A única alternativa é saltar sobre o dragão - há sempre um ao alcance da voz -, fazer a trouxa para uma jornada além do Sol e da Lua, e galopar diretamente para o seio do infinito". - John Blofeld

Acabo considerando esse texto não meu com trechos de John Blofeld e tampouco um texto de John Blofeld com notas minhas. Talvez seja uma co-autoria de ambos, uma vez que o importante sinólogo viveu numa época em que não havia tanta informação disponível nem tantos mestres haviam vindo ainda ao ocidente.

( Thursday, 08 February 2007 )
Carvalho

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